segunda-feira, 21 de julho de 2008

A Repartição das Chuvas


Quando alguém me pergunta, no leito de morte, do que aquela pessoa tinha morrido, depois de enobrecê-la a tal ponto de se levantar do túmulo, eu respondo que morreu de vida. Se fulano teve câncer, necrosamento, torção ou anemia falciforme, de que adianta? Morreu. Por isso que ao ver o galho caído de uma árvore, digo que ele morreu de árvore. Tem explicação não, o que sei é que caiu em cima de um fio de alta tensão. Agora eu pude ver que caiu mesmo, a luz e o galho.

Foi o Deus nos acuda, todo mundo correndo pela casa, tateando parede. Os gatos - aqueles dos fios de alta tensão - não existem mais, foram pro beleléu. Bem como lá em casa, aonde não se vê nem gato nem rato, partiram aos confins do apagão. Acendendo os vaga-lumes da virulosa madrugada.

A mãe correu, varou a cômoda no meio da casa, e interrompeu apertando o botão do interruptor da eletricidade. Parou os bolos da vovó também. Parou o mundo. E a gente se reuniu na cômoda do meio da casa para enfim programar o que será de nós daí para frente.

Eu esqueci do que tinha ali. Ora se. Os livros de além-mar do nosso avô. Portavam ar altivo na estante em frente à mesa. Asas daquele senhorzinho, pouco orfãos sim, e caros. Mas que chamavam atenção no tamanho. Os livrinhos do vovô eram maiores do que todos os livros do mundo. Impressionante.

Em grandes almofadões, nos arrumamos em roda para subverter a ordem do mundo, agora menor, do tamanho do livro. Veio um ao acaso; trazia das mentiras soluções, em meio ao caos generalizado. Provamos algo vacilante, que fugia dos sonhos para o meio da nossa roda, da nossa vida. Era Prozápio, hermético aventureiro e retirante da estória, que chegava a casa de volta da maior cruzada. Seu ofício: caixeiro viajante.

- Trouxe malas, Prozápio? Por que não fica para a noite? Veio a mãe com afago ao taciturno, por onde esteve deveras maltrapilho nas andanças, cansado e faminto.

- Era tudo que precisava, disse ele, sabe que não descanso há muito tempo. Tô morto pelas tabelas, mas feliz por chegar aqui.

Ao ressoar este suspiro apaziguante, Prozápio viu na casa um novo porto e parou, definitivamente, sem dar trela aos meninos com perguntas que enchiam a boca, e começou a mover sua mala para dentro. Aportado, ainda se estremeceu com as sutilezas da dona, a curiosidade também: cada vez mais cheios os olhos quase o engoliam, e muito animado já de antemão, trouxe consigo um martírio que jogou por cima do telhado, e arrefeceu aos encantos. Seu apreço até pagou um pedaço de bolo, ralo de dois dias atrás. Mas para ele que havia atravessado três desertos e uma estrada sem fim, era mais que um bolo ralo e insosso.

Esta estrada continua.

E, viajante como sempre, atropelara a barreira das aparências, trazia das mais instigantes invenções; encantou todas as crianças reunidas na sala com suas histórias, invadiu a escuridão adentro e trouxe luz aos corações inofencivos.

Disse que correu de tantos animais em montes, numa de suas desventuras, que parou em frente a um mastodonte sem chifres e balbuciou, baixinho, o suficiente. Foi o estopim da disparada; passando ao largo de mamulencos, babuínos, pterodáctilos, búfalos, leopardos; correu, correu, ele e o mastodonte, para longe, longe. Até parar e respirar, com sua cabeça desguarnecida de marfim, e entre uma bufada olhou no fundo do horizonte. As mais belas noviças, primas do rei do Qatar, vinham de áridos países e socorerram Prozápio imediatamente, prestes a ser abocanhado; depois o levaram para os aposentos da cúpula do castelo. Não era anunciável que sucumbisse a beleza dos jardins em que divagavam, embebecido. Traziam frutas e véus inebriantes e chegou ao escritório do ministro. Belmonte de Tajo.

Mandou se explicar das dissidências por que passou nas terras. E o que levara o sem país a uma investida por lá, o povo de Arcabeu, em seus rios sinuosos que mais pareciam espelhos tortos, por onde corriam navegantes e pescadores destemidos em dias de correnteza torrencial. Sisudo como uma música sem melodia, Tajo não gostava, porém, da desfaçatez; deu, sóbrio, um inquérito bastante prático:

- Era de se esperar algo tão novo por aqui, uma província quase inóspita. Mas, por seus relatos, vejo que não há muito a ajudar, ou que faça as vezes de um caixeiro.

- Meu senhor, lhe concedo um direito de petição. Arremeteu Prozápio novamente, desta vez sem olhar nos olhos do ministro, pois vendo aquela linda paisagem vinda da varanda lhe remetia a um quadro emoldurado. - Eu troco gado por lebre, ponderou, ainda assim fico a aferir muito do que pode ter.

Um lado de Tajo foi algemado pelas intenções do forasteiro. E ficou esperando ali alguma reação, bastante pensativo e assodado pelas reuniões e mais encontros, com budistas, heremitas, palestinos.

Sem mais delongas que já estava atrasado, Prozápio, ao amanhecer, partiu de novo pela mesma estrada que o trouxe aqui. De muito falasterio correu para não dar pistas da onde veio, nem para onde vai. Levou nas mãos alguns vestígios de nossa infância, dizia ele. A meninada foi atrás a debalde, até perdê-lo de vista.

Joao Vicente

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