quarta-feira, 14 de maio de 2008

Segunda parte


(Esta história é a continuação do post da semana passada)

Um alívio momentâneo veio antes do vazio causado pela falta dela. Como é que se foi envolver desta maneira? Agora não consegue se concentrar no trabalho, nem acertar a mão no café. Passando-se os dias, o jardim foi perdendo as plantas, mas a raiz do problema ainda estava lá. A falta que a moça do 203 causava na vida predial já se refletia nas horas perdidas vendo o entregador deixar os jornais a esmo, as correspondências se empilhando na sua mesa, as pessoas passavam e voltavam sem o afago passado.
A luta por continuar, à revelia dos fatos, sendo astuto e vigilante perdeu o sentido. Não te conto aquele dia em que distraído entrou em casa e da janela viu a mulher do doutor do 103 aos beijos e abraços com um suposto amante. Como por ter tido toda uma desilusão amorosa abraçou os dois com suspiros de um romântico; pegou pipoca e refrigerante e sentou na janela, deliciando-se com as carícias trocadas pelo casal.
Dentro de um filme, passou a se ver com a moça do 203 no lugar dos amantes, afinal ele também era um, inveterado: estavam só eles dois ali na janela, jantando à luz de velas com um vinho caríssimo a tira colo, depois mergulhando nos lençóis de seda inebriantes que, porventura, estariam na cama dela. Não julgo pela estirpe que a moça porta, mas na sua delicadeza em entrar e sair da portaria via-se que uma graça de menina ainda guardava segredos.
Ficou lá sofrendo, era melhor aquela melancolia criativa que o faz viajar pelos mais diversos cantos do inconsciente, vivendo outra dimensão do real, onde podia resolver todos os problemas da vida. Do impasse com o banco à peripécia de um relacionamento, estava nas suas mãos o controle do destino; da esperança em mudar de vida, tornar-se rico e viver numa casa a beira da lagoa, pescando com os netos, ao prazer de partilhar a vida com sua musa, passeando pelo parque, sentados no gramado ao ressoar de uma brisa constante que fazia o espaço ter uma profundidade sem fim.
De tanto ressoar no seu ouvido ele acordou assustado. O interfone da rua não parava e fez com que pulasse do mais profundo sono em meio a barulhos de caminhão, obras, pessoas carregando tralhas, um horror. Tinha que fazer alguma coisa, atendeu para que sossegasse por alguns instantes mas quem dera um descanso neste momento? Fora designado a ajudar na mudança de um morador, nestas horas que geralmente o caos toma conta de um edificio residencial. Desceu algumas escadas até o tal andar, aonde carregava-se móveis caríssimos, um piano vinha sendo retirado pela janela. Parou na porta e viu os números: 203.
Por alguns instantes veio na cabeça a imagem daquele apartamento vazio, empoeirado, prestes a sofrer mudanças estéticas; com seu ar incólume, agarrou-se à dúvida de que agora estaria sozinho no mundo. Não foi doloroso, nem aliviante, apenas seguiu o ritmo pulsante do silêncio que se deu.
Claro que, até ali, ele ainda nao tinha nenhuma certeza, nem chão nem nuvens de mudanças; estava tudo no terreno baldio da imaginação. E pra piorar, além de não saber da onde veio nem pra onde vai a mulher dos seus sonhos, entrou o novo morador com ares altivos lhe pedindo uma xícara de café. Ainda tinha que descobrir os carros na garagem, molhar o jardim... Mesmo assim fez o maldito café, ao que o senhor lhe devolveu depois de provar um sem gosto nenhum - estava muito, mas muito aguado.

Joao Vicente

4 comentários:

Anônimo disse...

agora sim!!

Anônimo disse...

vai se fuder, faz um comentario direito!

Anônimo disse...

Os porteiros são muitio estranhos mesmo. Sempre quis saber o porquê que todos têm passarinhos presos em gaiolas, nas portarias. Percebi que vc entende bem a mente dos porteiros, já foste um?

abraços

Anônimo disse...

ja fui. dos 18 aos 23 eu peguei a entrada de um edificio ali em copa. dava pra tirar um troco.