terça-feira, 26 de agosto de 2008

Retrato falado


Um dia Natália acordou a manhã e a pôs de pernas abertas para o sol. É assim: no quintal, todas as manhãs, Natália repousa o dia em cima de uma lata para os lírios acordarem. Logo em seguida, faz a brincadeira do primo com prima. Aves ensinavam o brinquedo "primo com prima não faz mal: finca finca".
Era uma criança peralta. Brincava de fazer comunhão com as coisas: fingia que espelho torto era lago, que horizonte era arame, que pedra era crepúsculo nascido para dentro de um olho de gafanhoto. Cresceu brincando no chão. De uma infância livre e sem comparamentos. Natália tem comunhão com as coisas e não comparação. Ela herdou de criança esta visão oblíqua e comungante com as paisagens. Por isso Natália entardece.
Tenho para mim que essa visão vem dela ter um íntimo enorme dentro do olho. Por motivo do íntimo não foi apenas de ver. Alem de ver, Natália tem visões, que são fantasias, coisinhas à toa, peraltagem. As coisas, como estão no mundo, de tanto vê-las dão tédio. Natália arruma novos comportamentos para as coisas do mundo. Seu quintal, por exemplo, é maior do que a cidade. É que o tamanho das coisas a gente mede pela intimidade que temos com elas. Há de ser como acontece com o amor.


Joao Vicente

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